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Governança da Inovação: o motor silencioso das Cidades Inteligentes


Quando pensamos em cidades inteligentes, a imagem mais comum que vem à mente envolve tecnologias futuristas: sensores espalhados pelo espaço urbano, aplicativos que prometem resolver tudo em poucos cliques, drones sobrevoando áreas de risco, ou veículos autônomos circulando em ruas conectadas. Essa visão tecnológica é sedutora, mas incompleta.


A experiência internacional demonstra que a verdadeira “inteligência” de uma cidade não está na quantidade de tecnologia implantada, mas na sua capacidade de transformar essas soluções em valor público concreto: mobilidade mais segura, saúde mais acessível, educação mais inclusiva, serviços públicos mais eficientes, sustentabilidade ambiental e maior qualidade de vida para todos.


Esse processo de transformação invisível é movido por algo que chamamos de governança da inovação. Diferente das obras visíveis ou dos aplicativos em lançamento, a governança não costuma aparecer nas manchetes. Mas é ela quem garante que a inovação urbana não seja apenas uma coleção de projetos isolados, e sim uma estratégia de longo prazo que sobrevive a governos, modismos e interesses particulares.


Podemos dizer, portanto, que a governança da inovação é o motor silencioso por trás das cidades inteligentes.


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O que é governança da inovação?

Governança da inovação pode ser definida como o conjunto de estruturas, processos, regras e lideranças que direcionam, priorizam, monitoram e corrigem as iniciativas de inovação em um território.


Ela envolve:

  • Articulação de atores: governo, setor privado, universidades e sociedade civil (a chamada hélice quádrupla).

  • Definição de objetivos e prioridades: quais problemas devem ser enfrentados primeiro e quais metas serão perseguidas.

  • Estrutura de coordenação: conselhos, comitês e secretarias técnicas que organizam as decisões.

  • Instrumentos de monitoramento: indicadores, metas, relatórios e ritos periódicos de revisão.

  • Transparência e participação: prestação de contas à sociedade e mecanismos de engajamento cidadão.

  • Aprendizado contínuo: incorporar erros, acertos e novos conhecimentos ao processo.


Enquanto a tecnologia é o que se vê (a “fachada”), a governança é o que se sente ao longo do tempo: a consistência dos resultados, a continuidade das políticas, a confiança dos atores e a capacidade de evoluir sem perder o rumo.



Por que a governança é o motor silencioso?


  1. Porque conecta tecnologia a valor público

    Sem governança, cidades correm o risco de gastar recursos em soluções de alto custo, mas baixo impacto. Instala-se tecnologia sem responder à pergunta essencial: para quê?


    Um relatório do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos Estados Unidos (NIST) criou o Holistic KPI Framework (2022), que mede cidades inteligentes em três níveis:


    1. Tecnologias instaladas (sensores, conectividade, IA);

    2. Serviços entregues (mobilidade, saúde, energia, água, segurança);

    3. Benefícios reais para a comunidade (qualidade de vida, equidade, sustentabilidade).


    A grande lição é simples: não adianta instalar sensores se eles não melhoram o transporte público, não reduzem acidentes ou não aumentam a eficiência do trânsito. A governança é quem garante essa conversão entre tecnologia e benefício.


  2. Porque dá direção e continuidade

    A cada ciclo político, cidades enfrentam o risco da descontinuidade: novos prefeitos suspendem projetos, secretários mudam prioridades, equipes são substituídas.


    A governança da inovação, quando institucionalizada em conselhos, comitês e regimentos internos, cria um guarda-chuva estratégico que sobrevive à política do dia a dia. Essa continuidade é fundamental para que projetos de longo prazo, como implantação de redes de energia limpa, integração de transporte multimodal ou digitalização de serviços públicos, possam chegar ao fim.


    O modelo de maturidade para Cidades Inteligentes e Sustentáveis (SSC-MM), desenvolvido pela União Internacional de Telecomunicações da ONU (ITU) em 2019, mostra que cidades inteligentes evoluem em cinco níveis de maturidade:


    1. Visão e estratégia inicial;

    2. Implantação básica de infraestrutura digital;

    3. Oferecimento de serviços inteligentes;

    4. Integração e interoperabilidade entre sistemas;

    5. Melhoria contínua e foco em valor público.


    Sem governança, cidades ficam presas no nível 2 (projetos isolados de infraestrutura) e não conseguem evoluir para níveis mais integrados.


  3. Porque articula múltiplos atores

    Cidades são ecossistemas complexos. Nenhuma secretaria, empresa ou universidade consegue sozinha resolver problemas como segurança urbana, transporte público ou resiliência climática.


    A governança da inovação atua como maestro de uma orquestra, garantindo que cada ator toque sua parte de forma harmônica e no tempo certo. Sem ela, temos cacofonia: projetos duplicados, interesses conflitantes, recursos desperdiçados e desconfiança generalizada.

    Estudos acadêmicos recentes, como “From Governance to Choreography: coordination of innovation ecosystems” (Innovation & Management Review, 2021), mostram que a coordenação evolui ao longo do ciclo de vida de um ecossistema:


    • Governança formal e centralizada nos estágios iniciais;

    • Orquestração compartilhada durante o crescimento;

    • Coreografia descentralizada quando há maturidade e confiança.


    Ou seja, a governança da inovação não é um modelo fixo: ela amadurece junto com o ecossistema.


  4. Porque garante legitimidade e confiança

    Inovação urbana sem participação cidadã corre o risco de se tornar tecnocrática ou excludente. É a governança que assegura espaços de participação, prestação de contas e transparência.


    Um exemplo inspirador é o conceito de Cidades MIL (Media and Information Literacy), promovido pela UNESCO. Ele amplia a visão de cidades inteligentes para incluir educação crítica, combate à desinformação, sustentabilidade e inovação social. A mensagem é clara: sem cidadãos informados, engajados e capazes de participar, não há inteligência que se sustente.



Framework para gestores públicos


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Com base nas melhores práticas globais e na experiência de cidades brasileiras, é possível propor um framework de governança da inovação para cidades inteligentes, dividido em cinco grandes etapas:


  • Diagnóstico e Linha de Base

    • Levantar dados confiáveis sobre a situação atual da cidade em áreas essenciais: saúde, mobilidade, educação, meio ambiente, segurança.

    • Usar metodologias internacionais, como:

      • ISO 37120, 37122 e 37123 – normas globais que permitem comparar indicadores urbanos (qualidade de vida, serviços inteligentes, resiliência).

      • Maturity Model da ONU (ITU) – avalia o nível de maturidade da cidade em termos de inteligência sustentável.

      • H-KPI do NIST – conecta tecnologias e serviços aos benefícios reais para a comunidade.


      🚀 Resultado esperado: um mapa de prioridades e oportunidades da cidade.


  • Definição de Objetivos e Modelo de Governança

    • Criar uma visão clara de futuro: que tipo de cidade inteligente queremos ser? Sustentável? Inclusiva? Digitalizada? Resiliente?

    • Instituir um Conselho de Inovação Urbana, com representantes do governo, setor privado, academia e sociedade civil.

    • Formalizar regras e rotinas: regimento interno, periodicidade de reuniões, canais de participação cidadã.


      🚀 Resultado esperado: um modelo de governança legitimado e pronto para guiar a inovação.


  • Estabelecimento de Metas e Indicadores

    • Definir de 10 a 15 indicadores centrais de impacto no cidadão (tempo médio de deslocamento, qualidade do ar, tempo de atendimento médico, cobertura de internet, eficiência energética).

    • Criar metas anuais e de médio prazo (3 a 5 anos), alinhadas a referências nacionais e internacionais.

    • Adotar métricas de impacto social e ambiental, além das tecnológicas.


      🚀 Resultado esperado: um painel de metas claras, auditáveis e comparáveis.


  • Execução e Gestão

    • Implantar uma plataforma de gestão digital que centralize informações, planos de ação e monitoramento de indicadores.

    • Estabelecer ritos de acompanhamento:

      • Reuniões mensais do comitê técnico para avaliar execução;

      • Revisões trimestrais do conselho para avaliar estratégia.

    • Garantir contratos transparentes com cláusulas de interoperabilidade, proteção de dados e ética algorítmica.


      🚀 Resultado esperado: uma execução coordenada e rastreável.


  • Mensuração, Transparência e Aprendizado Contínuo

    • Criar um painel público de indicadores, acessível à população, com linguagem clara.

    • Produzir relatórios anuais de impacto, auditados sempre que possível por entidades externas (como o WCCD – World Council on City Data).

    • Estabelecer ciclos de aprendizado: revisões periódicas para ajustar estratégias, incorporar erros e atualizar planos.


      🚀 Resultado esperado: uma cidade que aprende consigo mesma e melhora continuamente.



Benefícios de colocar a governança em primeiro lugar

Cidades que priorizam a governança da inovação colhem ganhos consistentes:


  • Legitimidade social – a população confia mais em governos transparentes e participativos.

  • Atração de investimentos – cidades com dados auditados e governança clara atraem empresas e parcerias.

  • Eficiência pública – menos desperdício, mais foco em resultados.

  • Resiliência institucional – políticas sobrevivem a trocas de governo.

  • Reputação internacional – cidades com métricas alinhadas a padrões globais ganham visibilidade em rankings e relatórios.



Conclusão

A tecnologia pode ser o rosto das cidades inteligentes, mas é a governança da inovação que é o coração e o motor silencioso desse processo. Sem ela, a cidade inteligente corre o risco de ser apenas um laboratório de projetos desconectados. Com ela, a cidade ganha rumo, continuidade, confiança social e capacidade de transformar inovação em valor público.


Em tempos de crise fiscal, climática e social, apostar na governança da inovação não é luxo, é condição básica para que as cidades brasileiras avancem de forma sustentável e inclusiva.



Referências

  • International Telecommunication Union (ITU) – Y.4904: Smart Sustainable Cities Maturity Model (2019).

  • National Institute of Standards and Technology (NIST) – Smart Cities and Communities:

  • A Key Performance Indicators Framework (2022).

  • Ministério das Cidades (Brasil) – Portaria nº 1.012, de 4 de setembro de 2025.

  • World Council on City Data (WCCD) – Normas ISO 37120, 37122 e 37123.

  • Bloomberg Harvard City Leadership Initiative – Using Data to Solve Urban Problems

  • (2025).

  • Mora, L., Deakin, M., et al. – Smart City Governance from an Innovation Management

  • Perspective (2023).

  • UNESCO – Cities MIL: Media and Information Literacy for Sustainable Cities (2021).

  • Deakin, M. & Waer, H. – Smart Cities: Governing, Modelling and Analysing the Transition (2014).

 
 
 

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